setembro 28, 2007



O POEMA

Sophia de Mello Breyner Andresen

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão

Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo


©Sophia de Mello Breyner Andresen e Editorial Caminho
POEMAS ESCOLHIDOS
Seleção de Vilma Arêas
Companhia das Letras - 2004

setembro 26, 2007



O RIO

Antonio Hernández

Como a pena ou como o cantar
existia desde sempre. Andava já
na montanha como um menino a que ninguém
presta atenção. Ao princípio,
levava nas suas águas toda a luz doentia.
Depois, ao fundir-se com tanta primavera,
Tornou-se luminoso como um conto.
Corria todas as tardes de maneira
diferente e, ao amparo do monte,
conseguia passar entre as pedras,
sobre a terra dura e sobre os obstáculos.
Mas estava tudo tão longe...
o mar, aquele mar sonhado com flores,
com sinos e com a aldeia agitada,
estava tão longe...
Os penedos eram duros,
e por mais voltas que fizessem
as nossas águas, por mais rodeios que fizessem
—o nosso amor, o nosso sonho, a nossa
razão de viver— perdiam por vezes
como o homem que começa a não entender
o melhor de tudo: a fé.

E há
alguns dias não estava como antes,
que com tanto alpechim e águas impuras
o rio turvava-se, perdia-se por si
como se perde uma criança com o seu jogo
mal começa. Contudo,
já tinha tantas horas de angústia,
de união, de entrega, que era impossível
separar-lhe uma gota e tornava-se
mais largo e duradoiro. Como o menino,
acabava por vencer. Era simples.
Se ao camponês o granizo lhe tira
a colheita, a raiva dá-lhe forças
para esperar uma outra. Se a um pássaro
o outono lhe rouba a ilusão, a primavera
devolve-lhe um ninho. Se uma sombra se vai,
uma luz nos chega. E aquilo
era o mesmo. O mesmo. Por mais
águas sujas que fossem para ele
numa tarde qualquer chegaria ao mar.

Tradução: Luís Filipe Sarmento

Antonio Hernández

IN: MARE NOSTRUM (1963-2003)

setembro 24, 2007



AS PALAVRAS

Eugénio de Andrade

São como um cristal
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória,
inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


In O Sal da Língua Precedido de Trinta Poemas,
Bibliotex, 2001 — 21/12/2006


setembro 22, 2007



OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

setembro 21, 2007



ADIAMENTO

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

setembro 16, 2007



PARQUES

Vinícius de Moraes

O tempo nos parques é íntimo, inadiável,
imparticipante, imarcescível.
Medita nas altas frondes, na última palavra da palmeira,
na grande pedra intacta, o tempo nos parques.
O tempo nos parques cisma no olhar cego dos lagos,
dorme nas furnas, isola-se nos quiosques.
Oculta-se no torso muscular do ficus,
o tempo nos parques.
O tempo nos parques gera o silêncio do piar dos pássaros,
do passar dos passos, da cor que se move ao longe.
É alto, antigo, presciente o tempo nos parques.
É incorruptível; o prenúncio de uma aragem,
a agonia de uma folha, o abrir-se de uma flor
deixam um frémito no espaço do tempo nos parques.
O tempo nos parques envolve de redomas invisíveis
os que se amam; eterniza os anseios, petrifica
os gestos, anestesia os sonhos, o tempo nos parques.
Nos homens dormentes, nas pontes que fogem, na franja
dos chorões, na cúpula azul, o tempo perdura
nos parques; e a pequenina cutia surpreende
a imobilidade anterior desse tempo no mundo
porque imóvel, elementar, autêntico, profundo
é o tempo nos parques.


Passeiam-se nos parques como gatos. Deslizando, com elegância e sem pressas. Apurando os sentidos, a reconhecer o território. Afagam o tronco de uma árvore, olham a copa e, se fosse da sua natureza, trepariam e ficariam muito serenos, deitados no garfo de dois ramos jovens. Esmagam nos dedos uma folha de lúcia-lima e cheiram-na, aspiram-na, com sensualidade disfarçada. Pontapeiam uma pinha caída no saibro do caminho, para depois, mais adiante, a apanharem e a arremessarem. Como um gato faz com um novelo. São solitários. Evitam cruzar-se com outros exploradores. Procuram tomar caminhos diversos. Debruçam-se nos lagos, molham as pontas dos dedos e não as enxugam. Às vezes passam-nas no rosto. Espiam os pássaros, detêm-se, para não os assustarem.
Os gatos, esses, aparecem de noite. É o seu tempo dos parques. É também o tempo de muitos outros bichos que viram os homens sem serem vistos. Dos mistérios dos parques só os gatos sabem. Nunca os revelarão. Os poetas sabem disso, mas continuarão a deslizar nos parques, imitando os gatos. Na esperança de um dia saberem ler o que eles trazem inscrito nas pupilas.

Licínia Quitério

setembro 13, 2007



REGRESSO ETERNO

Ruy Cinatti

Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpeando entre pedras o fulgor de uma idéia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência dum corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.


A noite! Se fosse noite. . .
Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentido
A esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzes refletem sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.


Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em balas de precário sonho...
Tudo é possível porque à vida dura
E a noite se desfaz
Em altos silêncios puros.
Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida,
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.

setembro 11, 2007



SABÍAMOS DO MAR SEM O SABERMOS

António Rebordão Navarro

Sabíamos do mar sem o sabermos,
do mar dos mapas, da cor azul do mar,
dos naufrágios no mar,
do sol solto no mar.

Sabíamos do mar sem o sentirmos
nos poros dilatados pelo mar,
o verdejante mar escalando as montanhas
tão bruscas como o sal.

Sabíamos do mar em sinuosos sinos
assinalando a noite
com corações arrepiados,
abertos como mãos
sulcadas de cabelos e molhadas
de rugas e escamas.

Sabíamos do mar em signos, símbolos,
tropos e metáforas.
Sabíamos do mar?
Sabíamos o mar.
Sabíamos a mar


O Inverno
Poemas (1952 - 1982)
Imprensa Nacional Casa da Moeda - Portugal

setembro 10, 2007



UM RIO TE ESPERA

Eugénio de Andrade

Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.

Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.

Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.

Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te de tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.

Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque;
sombra pura
nos grandes dias de verão.

Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.

setembro 04, 2007



PERDÃO SE PELOS MEUS OLHOS

Pablo Neruda

Perdão se pelos meus olhos não chegou
mais claridade que a espuma marinha,
perdão porque meu espaço
se estende sem amparo
e não termina:

- monótono é meu canto,
minha palavra é um pássaro sombrio,
fauna de pedra e mar, o desconsolo
de um planeta invernal, incorruptível.
Perdão por esta sucessão de água,
da rocha, a espuma, o delírio da maré

- assim é minha solidão -
saltos bruscos de sal contra os muros
de meu ser secreto, de tal maneira
que eu sou uma parte do inverno,
da mesma extensão que se repete
de sino em sino em tantas ondas
e de um silêncio como cabeleira,
silêncio de alga, canto submergido.

Últimos Poemas

setembro 03, 2007


APELO À POESIA

Carlos Queirós

Por que vieste? - Não chamei por ti!
Era tão natural o que eu pensava,
(Nem triste, nem alegre, de maneira
Que pudesse sentir a tua falta... )
E tu vieste,
Como se fosses necessária!


Poesia! nunca mais venhas assim:
Pé ante pé, covardemente oculta
Nas idéias mais simples,
Nos mais ingênuos sentimentos:
Um sorriso, um olhar, uma lembrança...
- Não sejas como o Amor!


É verdade que vens, como se fosses
Uma parte de mim que vive longe,
Presa ao meu coração
Por um elo invisível;
Mas não regresses mais sem que eu te chame,
- Não sejas como a Saudade!


De súbito, arrebatas-me, através
De zonas espectrais, de ignotos climas;
E, quando desço à vida, já não sei
Onde era o meu lugar...
Poesia! nunca mais venhas assim,
- Não sejas como a Loucura!


Embora a dor me fira, de tal modo
Que só as tuas mãos saibam curar-me,
Ou ninguém, se não tu, possa entender
O meu contentamento,
Não venhas nunca mais sem que eu te chame,
- Não sejas como a Morte!