fevereiro 28, 2007


A Morte da Arvore

Vivaldo Beldade

Leio nos teus ramos desnudados
e nas hastes quebradas
a luta travada na noite em que tombaste.
As tuas veias sem sangue
trazem-me aos sentidos a sinfonia da morte
no último acorde da tempestade.
Arvore agonizante,
eu sinto a dor da última folha que te abandona
e a prece desesperada do fim
na última lágrima que aspiras à terra.

Dedico esse curto poema a perda de um querido amigo.
Acho que nunca esperamos um adeus definitivo,
Nunca estamos preparados para esse momento
pois esta é uma fraqueza humana ingrata, inata.
Fica a Saudade,
águas passadas que se acumulam

em nossos corações, inundam nossos pensamentos,
transbordam por nossos olhos,
deslizam em gotículas de lembranças que por fim,
morrem na realidade de nossos lábios.

fevereiro 27, 2007



AO LONGE O MAR

Pedro Ayres de Magalhães

Porto calmo de abrigo
De um futuro maior
Ainda não está perdido
No presente temor
Não faz muito sentido
Já não esperar o melhor
Vem da névoa saindo
A promessa anterior
Quando avistei ao longe o mar
Ali fiquei
Parado a olhar
Sim, eu canto a vontade
Canto o teu despertar
E abraçando a saudade
Canto o tempo a passar
Quando avistei ao longe o mar
Ali fiquei
Parado a olhar
Quando avistei ao longe o Mar
Sem querer, deixei-me ali ficar

fevereiro 24, 2007


HUMILDADE

Mauro Mota

Que a voz do poeta nunca se levante
para ter ressonâncias nas alturas.
Que o canto, das contidas amarguras,
somente seja a gota transbordante.
Que ele, através das solidões escuras
do ser, deslize no preciso instante.
Saia da avena do pastor errante,
sem aplausos buscar de outras criaturas.

Que o canto simples, natural, rebente,
água da fonte límpida, do fundo
da alma, de amor e de humildade cheio.

Que o canto glorificará somente
a origem, quando mais ninguém no mundo
saiba ele de quem foi ou de onde veio.

fevereiro 22, 2007


SUAVE E TRANQÜILA

Renata Pallottini

Vinte anos passaram.
Conheço agora o trigo e as oliveiras
seu descanso e tormenta.
Tenho ouvido o rumor do mar e os cantos da montanha
e já vi cores que ninguém suspeita.

Vitrais e sombras vi nas catedrais,
sei que Deus é terrível pai preciso,
a morte cavalgada,
a agonia improviso.
Quando a luz chega é dia pelos nichos,
mas pode não amanhecer para um mendigo frio.

Sei que o amor é uma forma de pesquisa,
como quando de um pássaro o coração infinito
e pequeno parou na minha mão.
Não havia mais vôo naquele corpo vencido,
mas muito céu houvera naquele coração.

Espantei-me da terra e suas águas,
do aluvião sem margens, das lavas incontidas
e da candente voz de um canto de homem trouxe
esta lembrança que aqui jaz comigo
e que é feroz e doce.

Vi florir um cadáver,
vi chorar um menino.
Vi as árvores secas brotarem quando é tempo
e a neve recobrir os caminhos vazios.

Chorei do amor a vida, chorei do amor a morte,
vivi de muito amor e agora posso
saber muito e dizer alguma coisa.

Respeito a ruga e atendo a fronte jovem;
verdadeiro é viver como se pode
e ser alegre e simples apesar dos escombros.

Passei muitos verões a ouvir os frutos,
compreendi que eles vinham como vieste
mas tinham seu calor, que tu não tinhas.
Aceito a ausência de quem algum dia esteve,
mas partir não se pode antes de estar presente.
Ninguém testemunhou por frio e indiferente.

Vinte anos passaram, e a faca e a pedra e o tempo.
Ao longe um sol fazia seu caminho
e a lua de entre os dias ressurgia.

Envelhecias, forma empedernida.
Tão suave e tranqüila.

11-10-67

fevereiro 18, 2007


DA FUGA

Licínia Quitério

Fugir da casa pela fresta do desejo
Seguir o brilho das estrelas
que os olhos construíram
Deitar a mão ao soluço do amigo
e levá-lo contigo
até ao cimo da vontade
mais alta que a mais alta das montanhas
Soltar o grito e aguardar o eco
Se ele vier valeu a pena a fuga
Regressarás em paz à casa
abraçarás a árvore
velarás pelos ninhos e
ajudarás os pássaros
que um dia para a montanha fugirão

Porque fugimos? De que fugimos? Ou de quem? Tantas interrogações cabem dentro deste tema. Dei comigo a pensar numa cantilena em que o rato foge do gato que foge do cão que foge do pau que foge do lume que foge da água que foge... que foge... No fim da história (ou no princípio?) haverá um homem que também foge, sem saber de quê. Seria fácil dizer: "De si próprio.". Mas não me interesso por histórias com finais explícitos. Prefiro que acabe com uma interrogação. Prefiro? Ou será que estou a fugir de pensar no assunto?
Quem sabe?!

fevereiro 12, 2007


ONDE ESTÃO OS TEMPOS

Eduardo Nascimento

em que tudo era simples
por não ser nacessário outra coisa
senão um abrigo frágil de luar?
Onde estão os violinos dentro das gotas
As montanhas ainda sem cimento corpos e confusão?

Onde estão os amigos de infância
que olhavam o Tejo
das gaivotas e rostos sadios?

Onde estão nesta tempestade?

Quem perdeu as asas dentro da cidade?
Que espíritos são estes adormecidos em tédio,
que despem todos os dias a pele nas ruas
e trazem nos olhos a dureza
da morte adiada?

Quem bebeu a última vaga de esperança
e ficou com a apatia no fundo das veias
a ser naufrágio?

Onde estão oa animais que lambiam
as mãos das crianças?

Onde estão as aves
que viram no tempo claro
a última sensação de alegria?

Quem sabe da última folha beijada
pelo potro na planície?

Onde estão os caminhos desta cascata congelada?

Outono de maré cheia
Gravidez esquecida
de muitos silêncios num só corpo

Voo até ao infinito
desta necessidade de fuga como um raio
que nada toca pela ausência

Arvore esquecida no pântano
perto de um piano de cristal em melodia

Mundo autêntico que existe
além deste fastio de horas
sem nexo!


do livro "Pedaços do meu Tempo"
Prêmio de poesia Cidade de Ourense - Espanha

fevereiro 08, 2007



A PALAVRA

Pablo Neruda

... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas ... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ...
E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que, se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca mais, se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas ... Por onde passavam a terra ficava arrasada ... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes ... o idioma. Saímos perdendo ... Saímos ganhando ... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro ... Levaram tudo e nos deixaram tudo ... Deixaram-nos as palavras.


*Butifarra: espécie de chouriço ou lingüiça feita principalmente na Catalunha, Valência e Baleares. (N. da T.)