outubro 31, 2007



NA MINHA TERRA

Álvares de Azevedo


Laisse-toi donc aimer! Oh! l'amour c'est la vie.
C'est tout ce qu'on regrette et tout ce qu'on envie,
Quand on voit sa jeunesse au couchant décliner.

. . . . . . . .

La beauté c'est le front, l'amour c'est la couronne,
Laisse-toi couronner!
V. HUGO


I

Amo o vento da noite sussurrante
A tremer nos pinheiros
E a cantiga do pobre caminhante
No rancho dos tropeiros;

E os monótonos sons de uma viola
No tardio verão,
E a estrada que além se desenrola
No véu da escuridão;

A restinga d'areia onde rebenta
O oceano a bramir,
Onde a lua na praia macilenta
Vem pálida luzir;

E a névoa e flores e o doce ar cheiroso
Do amanhecer na serra,
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra;

E o longo vale de florinhas cheio
E a névoa que desceu,
Como véu de donzela em branco seio,
As estrelas do céu.

II

Não é mais bela, não, a argêntea praia
Que beija o mar do sul,
Onde eterno perfume a flor desmaia
E o céu é sempre azul;

Onde os serros fantásticos roxeiam
Nas tardes de verão
E os suspiros nos lábios incendeiam
E pulsa o coração!

Sonho da vida que doirou e azula
A fada dos amores,
Onde a mangueira ao vento tremula
Sacode as brancas flores,

E é saudoso viver nessa dormência
Do lânguido sentir,
Nos enganos suaves da existência
Sentindo-se dormir;

(...)

III

Quando o gênio da noite vaporosa
Pela encosta bravia
Na laranjeira em flor toda orvalhosa
De aroma se inebria,

No luar junto à sombra recendente
De um arvoredo em flor,
Que saudades e amor que influi na mente
Da montanha o frescor!

E quando à noite no luar saudoso
Minha pálida amante
Ergue seus olhos úmidos de gozo,
E o lábio palpitante...


Manuel Antônio Álvares de Azevedo.
São Paulo - SP, 1831 - 1852.
Obras Principais: Obras I (Lira dos Vinte Anos), 1853;
Obras II (Pedro Ivo, Macário, A Noite na Taverna, etc), 1855

outubro 30, 2007



OCEANO NOX

Antero de Quental

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...


Antero Tarqüínio de Quental.
Ponta Delgada (Açores), 1842 - 1891


outubro 26, 2007



A CAMINHO DA CASA

Renata Pallottini

Talvez haja uma carta, ou um livro, ou um poema.
Quando menos há a necessidade de sentir-me doméstica.
Eis o que significa todos termos um endereço:
não é para que os outros nos achem,
mas para que nós nos achemos.

Recuperada a tranquilidade do silêncio que nada turba,
porque os ruídos familiares nem mais ruído são
(tic-tac de relógio que um crocodilo manso engoliu).

Recuperada a unidade de lugar e a unidade de posses:
meus livros, meus discos, meus. . .

Ontem nada me pertencia, na rua,
sob o influxo da noite profunda.

Mas é que agora estou a caminho da casa.
Dessa coisa que faz dos marinheiros seres humanos.


©Renata Pallottini
Chão de Palavras
Editora Círculo do Livro, São Paulo, 1977

outubro 25, 2007



A CONCHA

Ossip Mandelshtam

Talvez te seja inútil minha vida,
Noite; fora do golfo universal,
Como concha sem peróla, perdida,
Me arremessaste no teu areal.

Moves as ondas, como indiferente,
E cantas sem cessar tua melodia.
Mas hás de amar um dia, finalmente,
A mentira da concha sem valia.

Jazer só a seu lado pela areia
E pouco faltar para que a escondas
Nessa casula onde ela se encandeia
à sonora campânula das ondas,

E as paredes da frágil concha, pouco
a pouco, se encherão do eco da espuma,
Tal como a casa de um coração oco,
Cheio de vento, de chuva e de bruma...

(1911)

Tradução: ?
Poeta Russo, nascido em 15.01.1891
Terminou seus dias num campo de prisioneiros, em 27.12.1938, na Sibéria.
Estudou na Escola de Tenishevsky, Universidade de Heidelberg e Universidade de St. Petersburg.


outubro 23, 2007



SAUDADE


Pablo Neruda

SAUDADE... - Que será... eu não sei... tenho buscado
em certos dicionários poeirentos e antigos
e outros livros que ocultam o significado
dessa doce palavra de perfis ambíguos.

Dizem que as montanhas são azuis como ela,
que nela empalidecem longínquos amores,
e um nobre e bom amigo meu (e das estrelas)
nomeia com os cílios e as mãos em tremores.

E no Eça de Queiroz sem olhar a adivinho,
o segredo se evade em sua doçura e sede,
como essa mariposa, corpo em desalinho,
sempre longe - tão longe! - de minhas calmas redes.

Saudade... tens, vizinho, o real significado
dessa palavra branca que, peixe, se evade?
Não... treme na boca seu tremor delicado...
Saudade...


©Pablo Neruda - (Fundación Pablo Neruda), 1974

Título Original: Crepusculario
Tradução: José Eduardo Degrazia
L&PM, Ed. 2004

outubro 19, 2007



A PRIMAVERA


Egito Gonçalves

Pouco sabemos sobre a Primavera!

Mas sabemos que as árvores reverdecem,
navios dançam sobre vagas curtas
e às janelas abrem-se os sorrisos
que adoçam os olhares e as manhãs.

Sabemos que o amor vem dos telhados
para ceifar os restos da agonia
e no ar límpido que anuncia o Verão
a coragem ganha alento, novos ritmos.

Sabemos que são fáceis as viagens
e o lançar de escadas sobre o abismo;
que os ventos são amenos e é possível
com um sopro afastar o silêncio e angústia.

Sabemos que um relógio quebra a inércia
e ordena que se queimem os arquivos;
que há pássaros e peixes que perfuram
a rede com que o cerco nos limita.

Sabemos que então se lavra terra
onde germina o pão e os lilases
e é doce repousar sobre os teus seios
- primaveras também, esperança, vida...


© Egito Gonçalves

De: Poemas Políticos 1952-1979
Moraes editores, 1980

outubro 17, 2007



OS AMIGOS

Sophia de Mello Breyner Andresen

Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta e impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão

1993

©Sophia de Mello Breyner Andresen
(de: Musa, 1994)


outubro 14, 2007



SOBRE TI MESMO...


©Carol Timm

Tu te sentas no teu banco do jardim,
Enquanto contempla os passarinhos,
E pensas nos quintais da tua infância...

Tu escolhes a hora do dia que o sol brando,
Deixa as aves mais a vontade para voar...
E bate as asas com elas em pensamento ou sonho.

Tu entendes que a vida é essa passagem.
Essa aventura até mesmo do que ficou para trás.
Das tardes noutros países, noutras paisagens...

Tu já compreendes que não há morte para ti.
Todos os fantasmas te habitam e com eles revives,
As histórias de tua avó e as tuas histórias são continuidade...


©Carol Timm
Esse maravilhoso poema recebi da Carol,

em resposta ao poema O JARDIM, de autoria da Renata Pallottini.
Obrigado, de todo coração, Carol.
A Foto foi uma das minhas primeiras fotos aos 12 ou 13 anos
de idade, com minha velha Rolleiflex, revelada e copiada em casa.
Fotografia, essa mágica paixão.

outubro 12, 2007



III - QUANDO OS MEUS OLHOS...

Mario Quintana

Quando os meus olhos de manhã se abriram,
Fecham-se de novo, deslumbrados:
Uns peixes, em reflexos doirados,
Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se

Rua em rua, acenderam-se os telhados.
Num claro riso as tabuletas riram.
E até no canto onde os deixei guardados
Os meus sapatos velhos refloriram.

Quase que eu saio voando céu em fora!
Evitemos, Senhor, esse prodígio...
As famílias, que haviam de dizer?

Nenhum milagre é permitido agora...
E lá se iria o resto de prestígio
Que no meu bairro eu inda possa ter!...


©Mario Quintana / Helena Quintana 1994
Em: A Rua dos Cataventos, pág. 21
2. Edição - São Paulo - Editora Globo, 2005


outubro 11, 2007



ROMANCE INGÉNUO DE DUAS

LINHAS PARALELAS


José Fanha

Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito a infinito

Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
"Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim...!

Diz a outra: "Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!"

Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

©José Fanha
Em: Eu Sou Português Aqui

outubro 08, 2007



O JARDIM

Renata Pallottini


Neste velho jardim há três cachorros
enterrados; seus ossos e seu pêlo.
Sua morna gordura transitória
hoje é húmus e flor para o jardim.
Também sangue enterrado de memória;
também gritos e fugas infantis.
Trepadeiras encobrem lagartixas,
há um louco derramar-se do capim.
Crescerem plantas é o silêncio. Tudo
é o mesmo silêncio, de manhã.

As orquídeas azuis já feneceram
há muito tempo em cinza neste chão.
Os animais passam furtivos, entre
os restos de cerâmica e folhagem.
O muro abre nas fendas novos rumos
e em torno o eterno musgo manso nasce.

Os três cachorros jazem enterrados,
numa constância fiel que não tem fim.
Sua morna gordura é hoje o húmus
e seus olhos são flor neste jardim.

©Renata Pallottini
Chão de Palavras
Editora Círculo do Livro, São Paulo, 1977

outubro 05, 2007



QUEM PODE IMPEDIR A PRIMAVERA

Ruy Cinatti

Quem pode impedir a Primavera
Se as árvores se vão cobrir de flores
E o homem se sentiu sorrir à Vida?

Quem pode impedir a surda guerra
Que vai nos campos deslocando as pedras
- Mudas comparsas no ritmo das estações -
E da terra inerte ergueu milhares de lanças
Que a tremer avançam, cintilantes, para o limite
Em que a luz aquosa se derrama
Como um mar infinito onde o arado
Abre caminho misterioso à seiva inquieta!

Quem pode impedir a Primavera
Se estamos em Maio e uma ternura
Nos faz abrir a porta aos viandantes
E o amor se abriga em cada um dos nossos gestos.

Quem?...
Se os sonhos maus do Inverno dão lugar à Primavera!

De: Nós não somos deste mundo, 1941
PORTUGAL

outubro 01, 2007



SE EM PÁSSAROS . . .

Renata Pallottini

Se em pássaros a tarde vai
se a água do lago é verde
por que não somos nós pacíficos mortais
se a morte é essa renovada perda

se pelo lago a voz das crianças voa
e se as crianças ao seu redor (da voz)
tentam voar, por que não somos nós
alguma coisa assim tranquilamente boa

e como as árvores e como o campo (flores
e jamais afã) não vamos nós
ao encontro da tarde e de sua voz
de seus silêncios e de suas cores

e amor não damos, se em pássaros se vai
esta tarde, talvez a última e a mais pura
e não sorrimos e não choramos enquanto a tarde dura
e não nos debruçamos sobre a água que cai

verde como os verões, verde de folha verde
claríssima e translúcida, guardada
entre os limites pétreos da amurada
e as brancas lindes destas alamedas.

Ah, ser respiração de árvore, ondeada
vaga de ramos, rendas de folhagens
ou qualquer coisa de animal e de selvagem
ainda assim naturalmente branda...

Se em tremores se vai a tarde ao vento
e outra igual sabe Deus quando virá
por que não agradeço a qualquer deus em pensamento
antes que a tarde ao vento para sempre se vá?


©Renata Pallottini
Chão de Palavras
Editora Círculo do Livro, São Paulo, 1977