novembro 23, 2007



DIZ-ME O TEU NOME...

Maria do Rosário Pedreira

Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.


©Maria do Rosário Pedreira


novembro 19, 2007



O SONHO

Renata Pallottini

As coisas de sonhar não são palavras.
Como dizer que era violeta o pomar percorrido?
E do muro pesado
que separava esse pomar do outro
como hei de construir as frestas luminosas?

Se num certo momento fui levada
ao jardim do sol posto onde te contemplava
a ti, serena luz, alba serena, como
hei de dizer que o céu era dourado
sem que alianças fáceis rolem, cantem
no lajedo onde os pés pousei a medo?

As coisas de sonhar não são palavras.

Faz-se uma tentativa de segredo
e o cerrado, cerrado pensamento
incrusta-se nos olhos, pedra negra.

As silhuetas vi contra o céu claro.
Depois fugi, olhando a porta em ruínas
onde teus mortos se desencantavam.

Se não posso dizê-lo com palavras,
se não posso toma-lo nos meus lábios,
que beleza cadente é essa que espreito,
por que sei esse amor que não me é dado?


©Renata Pallottini
Chão de Palavras
Editora Círculo do Livro, São Paulo, 1977

novembro 15, 2007



ORFEU REBELDE

Miguel Torga

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.


Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha' gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.


Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.


Pseudónimo do médico Dr. Adolfo Rocha.
Natural de Trás-os-Montes,
viveu e exerceu a sua profissão em Coimbra
onde faleceu no ano de 1995.
Entre muitos outros prêmios,
figura o da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Do livro "Libertação" - 3ª. edição - Coimbra (1960)

novembro 11, 2007



CHUVA OBLÍQUA

Fernando Pessoa

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem de porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
(...)

Fernando Pessoa
Portugal
1888-1935

Nasceu em Lisboa. Entre 1895 e 1905, viveu na África do Sul. Escreveu quer sob os heterónimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, quer sob o semi-heterónimo Bernardo Soares e Pessoa ortónimo. É considerado um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos. Poeta e prosador. Apesar de muito conhecido, Pessoa continua ainda por conhecer. É, decerto, o mais complexo e diversificado dos escritores portugueses.

novembro 09, 2007



SOBRE FLANCOS E BARCOS

Eugénio de Andrade

Havia ainda outro jardim o da minha vida
exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães de pé
é sempre a mesma inquietação

este delírio branco ou o rumor
da chuva sobre flancos e barcos
o inverno vai chegar
sobre a palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem

era o sopro distante das manhãs sobre o mar
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios
do coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar

©Eugénio de Andrade
In: Véspera de Água


novembro 08, 2007



CAMINHEIRO

Ossip Mandelshtam

Sinto é um medo, um medo insuperável
Defronte das alturas misteriosas.
E dizer que me agradam andorinhas
No céu e do campanário o alto voo!

Caminheiro de outrora, cá me iludo
Pensando ouvir à borda do abismo
A pedra a ceder, a bola de neve,
O relógio batendo eternidade.

Se assim fosse! Mas não sou o peregrino
Que vem dos fólios antigos desbotados,
E o que em mim real canta é esta angústia:

Certo – desce uma avalancha das montanhas!
E toda a minha alma está nos sinos,
Só que a música não salva dos abismos!


©Ossip Mandelstam,

In: Guarda Minha Fala para Sempre
Editora: Assírio & Alvim, 1996
Tradução: Filipe Guerra e Nina Guerra

novembro 07, 2007



TRY TO REMEMBER

©Harvey Schmidt composed the music
©Tom Jones wrote the lyrics

Try to remember the kind of September
When life was slow and oh so mellow
Try to remember the kind of September
When grass was green and grain so yellow
Try to remember the kind of September
When you were a young and a callow fellow
Try to remember and if you remember
Then follow ( follow ) follow ( follow ) follow . . .


Try to remember when life was so tender
That no one wept except the willow
Try to remember when life was so tender
That dreams were kept beside your pillow
Try to remember when life was so tender
That love was an ember about to billow
Try to remember and if you remember
Then follow ( follow ) follow ( follow ) follow . . .


Deep in December it's nice to remember
Although you know the snow will follow
Deep in December it's nice to remember
Without a hurt, the heart is hollow
Deep in December it's nice to remember
The fire of September that made you mellow
Deep in December our hearts should remember
Then follow ( follow ) follow ( follow ) follow . . .


Melhor interpretação dessa música dos
anos 65 - 75, foi feita pelo grupo
The Brothers Four, que tem outro grande sucesso
dessa mesma época: Greenfields.

novembro 06, 2007



MÃE, EU QUERO IR-ME EMBORA

Maria do Rosário Pedreira

Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.


Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.


Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.


Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.


©Maria do Rosário Pedreira
In "O Canto do Vento nos Ciprestes"
Gótica, 2001, 80 pags.
Portugal


novembro 05, 2007



DOURO

Filipa Leal

Não sei se prefiro o rio
ou o seu reflexo nas janelas espelhadas.

De um lado
os barcos ancorados,
do outro lado:
barcos - na imediata memória das âncoras.
Deste lado, o porto, ou o cais,
contracenando com a sua própria inexistência
daquele lado.

Existirá aquele rio nos espelhos?
Poderá este subsistir sem as janelas?

Sou dourada como os peixes que te
desabitaram. E, do outro lado, sou
desabitada.

©Filipa Leal
in "Talvez os Lírios Compreendam"
Portugal


novembro 03, 2007



AS ÁRVORES

Álvaro Pacheco

Escuta este segredo: o crescimento
é no passado, o presente
é um disfarce
e as árvores que permanecem
quase sempre não têm
a cor normal de árvores.

Fica assim muito claro: como
sobreviver com o vento
não te poupando as crinas dos cavalos

e os pássaros negros te seguindo
vindos de um desenho fúnebre
voando em formação
pelas inscrições no céu
das palavras e gestos
que nos esconderam
as pessoas que amamos?

No passado é que crescem as árvores
sempre no começo do outono
de países distantes.

Teresina, novembro 86.


©Álvaro Pacheco
Geometria dos Ventos
Editora Record - Rio de Janeiro - 1992 - 1ª. Edição