dezembro 02, 2008

MUDEZ

Torquato da Luz


Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.


©Torquato da Luz
http://oficiodiario.blogspot.com/



outubro 18, 2008



O ALFANGE DO TEMPO

Thiago de Mello


Para Antonio Faria

O tempo é o grande milagre
da vida do homem no mundo.
Não tem começo nem fim.
Mas está vivo, animal
respirando imenso em tudo
que a gente quer, sonha e faz.

O tempo que já passou
te conta como vai ser
o tempo que vai chegar.
Tudo leva a sua marca,
de pétala ou de ferrão.

Tudo traz o seu condão:
a criança correndo; o rio
passando, a rosa se abrindo,
a lágrima da alegria,
o silêncio da amargura,
a luz-mansa da ternura,
o sol negro da pobreza.

O tempo é o nada que é nada.
O tempo é o tudo que é tudo,
o tudo que vira nada,
o nada virando amor,
o amor inventando estrelas,
a mais linda se apagou
na fronte da moça amada.

O tempo está no teu peito
clamando nas coronárias,
mas se esconde nas funduras
dos neurônios quando sonhas.
Está no fogo e no orvalho,
fermenta o pão que não chega,
arde o forno da esperança.

Alma do tempo é a mudança
que come o que vai mudando
e depois dorme sonhando
disfarçado de memória.

Nada perdura na vida,
a não ser o próprio tempo,
finge que passa, mas fica.
Imutável, modifica.

O tempo é o sol do milagre.
Cuidado, ele está chegando
na claridão da manhã.
A noite inteira ficou
no seu passo, te esperando,
de espreita em teu próprio sono.

Vem vindo para comer
na palma da tua mão.
Trata bem dele, aproveita,
enquanto há tempo, o que o tempo
permite ao teu coração.

Quem sabe ele vem trazendo
um alfange? Ninguém sabe.
Pode ser uma canção.

Barreirinha estrelada, 1998.


©Thiago de Mello
Poemas Preferidos
pelo autor e seus leitores, 2001
(Do Livro: Campo de Milagres,1998)
Editora Bertrand Brasil Ltda
Rio de Janeiro - RJ - Brasil


outubro 05, 2008



BUCÓLICA

Miguel Torga


A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.


©Miguel Torga
Escrito em S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937
Publicado em “Diário I”, Coimbra, 1941
E em “Poesia Completa”, 2000
Editora: Dom Quixote
Portugal

setembro 29, 2008



O VENTO NAS FOLHAS

Marta Gonçalves


Converso com o tamarindo e escuto
o vento nas folhas.
A palavra cobre a terra, cobre
as mãos inquietas. A idade é remota.
Longe ficaram as sementes.


A idade cega os olhos e invade a morte.
Não tenho o sono do limbo. O muro nasce
a erva no pôr-do-sol. A árvore vem do tempo
das águas e traz a maresia dos cardumes.


O silêncio das nascentes guarda a lonjura
da canção. O mesmo silêncio no verde pinheiro.
O verso perdeu o sol. Quero falar da criança
da rosa do último adeus da velha casa.
Sombras habitam o âmago do texto.


Converso com o tamarindo a história da alma.
A alma se esqueceu das estrelas. O medo
das confissões e o desespero da fala abrigam
um século de vida nos dedos nodosos de sonhos.


©Marta Gonçalves
In, Paisagem Imaginada
Juiz de Fora: Edições de Minas, 1997
Brasil


setembro 28, 2008



A SEREIA DAS PERNAS TORTAS

Adília Lopes


Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita.
Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:
-Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
-Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
-Faz-me ou bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam dela, tanto quando era bonita como quando era feia, como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.
Na cozinha do palácio as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso quando os criados foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
-Será uma sereia?- perguntaram em coro as criadas ao rei.
- Não, não é uma sereia porque tem as duas pernas, muito tortas, uma mais curta que a outra. - respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas foram embora:
- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona. E casaram logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.


©Adília Lopes
In, A Bela Acordada de Obra,
Lisboa, 1997
Portugal


setembro 22, 2008




MÃOS ABERTAS

(Ao Manuel Andrade)


Ana Vidal


Mãos abertas... li um dia
um poema que as cantava
mãos que nasceram para dar
Tão livres, que me encantava
aquela estranha magia
Mãos errantes, feitas de ar

Mãos abertas... como as mãos
do poeta que as cantou
tão esquivas como um adeus
Mãos que a poeira sujou
mãos moldadas em mil mãos
mãos de um homem que morreu

Mãos que só deram
e não tiveram
nada de seu
Mãos que se ergueram
e acenderam
estrelas no céu
Mãos que tocaram
mas não guardaram
sonhos perdidos
A sós ficaram
e se tornaram
anjos caídos


©Ana Vidal
In: Seda e Aço
Poemas
D&G Edições, Dezembro de 2005
Portugal

setembro 13, 2008



OS BARCOS

Thiago de Mello


Os barcos nascem como nascem dores.
E chegam como pássaros ao céu,
como flores do chão. São mensageiros.
Vêm na crista dos astros, vêm de ventres
por onde rolam rastros de cantigas
de antigas barcarolas estaleiras.
Trazem na proa audácias e esperanças,
as cismas e os assombros nos porões.


A mão que os faz, humana, os não perfaz,
apenas segue, tímida, ao comando
de vozes nascituras que lhe chegam
da boca dos martelos e das ripas.
A si mesmos se fazem, pelo mando
de voz sem boca: os barcos são auroras.
Despejam-se na foz de águas escuras.
Contudo, chegam sempre de manhã.


Chegam antes, alguns. Outros são póstumos.
Há os que não chegam nunca: naufragaram
nas primícias do rio. Tantos mastros
se vergam na chegada, outros se racham.
Partem-se popas, lemes, em pelejas
imaginárias contra calmarias.
Uns são velozes, zarpam mal-chegados,
outros são lerdos, de hélices sem sonhos.


Há barcaças nascidas para as idas
ao oco dos mistérios, há as que trazem
lendas futuras presas ao convés,
as que guardam nos remos os roteiros
de grandes descobertas e as que vêm
para vingar galeras soçobradas.
Há as que já chegam velhas, sem navego.


O mar, sempre desperto, espreita e espera
a todos, e de todos se acrescenta.
Para barcos se fez o mar amargo
e fundo, sobretudo se fez verde.
O mar nem sempre os quer. O mar se tranca
frequentemente a barcos, e os roteiros
marítimos se encantam em lajedos,
estraçalhando quilhas e calados.


O coração das caravelas viaja
desfraldado nos mastros, invisível
bandeira também bússola. Altaneiro,
ele surpreende, quando manso, as rotas
que se desenham longes sobre o mar.
Sextante é o coração, que escuta estrelas,
que antes de erguer as âncoras demora-se
em concílio amoroso com os ventos.


O coração comanda. Manda e segue.
E, à sua voz, os barcos obedecem
e avançam, confiantes, pois dos mastros
as velas vão surgindo, vão crescendo
como cresce uma folha de palmeira,
às manobras da brisa sempre dóceis.
De caminhos de barcos sabe o mar.
Os ventos é que sabem dos destinos.


©Thiago de Mello
In, Poemas Preferidos
pelo autor e seus leitores, 2001
(Do Livro: Tenebrosa Acqua,1954)
Editora Bertrand Brasil Ltda
Rio de Janeiro - RJ - Brasil


setembro 08, 2008



POEMA PARA HABITAR

Albano Martins



A casa desabitada que nós somos

pede que a venham habitar,

que lhe abram as portas e as janelas

e deixem passear o vento pelos corredores.

Que lhe limpem os vidros da alma

e ponham a flutuar as cortinas do sangue

– até que uma aurora simples nos visite

com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.

Até que uma flor de incêndio rompa

o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.

Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua

sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.


©Albano Martins
Em: Coração de Bússola
Colecção "Daimon", Évora, 1967
Portugal


setembro 06, 2008



POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO

Natália Correia


Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
E a cor dum navio em movimento
E como ave, ficar parada a vê-la
E como flor, qualquer odor no vento.

Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio de cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Deixem ao dia a cama de um domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.


©Natália Correia

Primeira Edição em: Passaporte, 1958
Depois em: Poesia Completa, 1999
Publicações Dom Quixote
Portugal



agosto 29, 2008



TRABALHOS DO OLHAR


Al Berto


Escrevo-te a sentir tudo isto...
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos
nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos
sussurrados junto ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfurica borboleta revelando-se
na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade
que a pouco
e pouco morde a sua imobilidade.....

...habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens , radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara.....
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado
de finos bagos de romã
repara....
como o coração de papel amareleceu no esquecimento
de te amar...


©Al Berto

Trabalhos do Olhar, 1982
Contexto
Portugal


agosto 28, 2008



UMA FORMA DE ME DESPEDIR

Ruy Belo


Há o mar há a mulher
quer um quer outro me chegam em acessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais do que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta
e um prazer em o dizer
um gosto afinal em gostar
Enfim o mar a mulher
pode num dos casos ser a/mar a mulher
mera forma talvez de uniformizar o artigo
definido do singular
Há ondas no mar
o mar rebenta em ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher
que ela faz ondular melhor de tarde em tarde
no mês de setembro nas marés vivas
O melhor da mulher talvez o olhar
é para mim o mar da mulher
e à mulher que um só dia encontro na vida
de passagem um simples momento num sítio qualquer
talvez a muitos quilómetros do mar
mas mulher que não mais consigo esquecer
mesmo imerso na dor ou submerso em cuidados
a essa mulher qualquer
eu chamo mulher do mar
Nos fins de setembro quando eu partir
de uma cidade seja ela qual for
quando eu pressentir que alguém morre
que alguma coisa fica para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou numa água
num pouco de água ou em muita água
onda do mar lágrima ou brilho do olhar
eu recear seriamente vir-me a submergir
direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir


©Ruy Belo
In, Toda a Terra

Editorial Presença, 1976
Portugal

julho 02, 2008



CANÇÃO PARA OS FONEMAS DA ALEGRIA

Thiago de Mello

A Paulo Freire

Peço licença para algumas coisas.
Primeiramente para desfraldar
este canto de amor publicamente.

Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas
que em meu peito floresce de menino.

Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,

e pode ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas

são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis gerando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.

Às vezes nem há casa: é só o chão.
Mas sobre o chão quem reina agora é um homem
diferente, que acaba de nascer:

porque unindo pedaços de palavras
aos poucos vai unindo argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor,

e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre num clarão

que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena que paga por ser homem,
mas um modo de amar - e de ajudar

o mundo a ser melhor
Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um homem novo:

ele atravessa os campos espalhando
a boa-nova, e chama os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte,

contra o bicho de quatrocentos anos,
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.

Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:

canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler.

Santiago do Chile,
primavera de 1964.


©Thiago de Mello
In, Faz Escuro Mas Eu Canto, 1998
Editora Bertrand Brasil Ltda
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

maio 24, 2008



VIESTE COMO UM BARCO
CARREGADO DE VENTO


Maria do Rosário Pedreira


Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar esta cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.


©Maria do Rosário Pedreira,
Em “ O Canto do Vento nos Ciprestes”
Editora: Gótica, 2001
Portugal

maio 12, 2008



MAR

Al Berto


Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grebo. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: "onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar" e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.
Nunca mais o lembraremos
Um dia, em frente ao mar, ele pensou:
Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com isso. No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco provável que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem mundo, definitivamente só.
Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte, conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma vez mais, que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também, e que do seu nome não restasse uma sílaba.
Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios insolúveis: viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que, provavelmente, se conseguisse desvedar um deles, o outro sê-lo-ia também.
Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa quanto a obra escrita. Por vezes diluiam-se uma na outra, confundiam-se, tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita, um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção à sabedoria última do silêncio - a memória total do mundo.
O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa, desiludia-se. A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava inacessível; e outras ignorâncias surgiam, oturas trevas o cegavam. O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance.
Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro de si, um ser de lume - um anjo mudo que o iluminava, revelando- lhe aquilo que devia ou não silenciar.
E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talendo da árvore e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe era transmitida, ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele que diante de si se movia.
Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação - e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado, tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração.
Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca mais. Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde, é jovem ainda, e diz-me a sorrir:
- Aqui tens o inocente revólver para a eternidade.


©Al Berto, "O Esconderijo do Homem Triste", O Anjo Mudo,
Contexto, Lisboa 1993, pp. 42-45


maio 07, 2008



SE TU ME ESQUECES

Pablo Neruda


Quero que saibas

uma coisa.

Tu já sabes o que é:
se olho
a lua de cristal, o ramo rubro
do lento outono em minha janela,
se toco
junto ao fogo
a implacável cinza
ou o enrugado corpo da madeira,
tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe
aromas, luz, metais,
fossem pequenos barcos que navegam
para essas tuas ilhas que me aguardam.

Pois ora,
se pouco a pouco deixas de me amar,
de te amar, pouco a pouco, deixarei.

Se de repente
me esqueces,
não me procures,
já te esqueci também.

Se consideras longo e louco
o vento de bandeiras
que canta em minha vida
e te decides
a me deixar na margem
do coração no qual tenho raízes,
pensa
que nesse dia
a essa hora
levantarei os braços
me nascerão raízes
procurando outra terra.

Porém,
se cada dia,
cada hora,
sentes que a mim estás destinada
com doçura implacável.
Se cada dia se ergue
uma flor a teus lábios me buscando,
ai, amor meu, ai minha,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
do teu amor, amada, o meu se nutre,
e enquanto vivas estará em teus braços
e sem sair dos meus.


© Pablo Neruda, 1952
and © Heirs of Fábio Neruda, 1980.
Título original: Los versos dei Capitán

Tradução de: Thiago de Mello
Os Versos do Capitão
Impresso no Brasil, 2004 - 8a edição
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.


maio 04, 2008



NÃO SEI COMO DIZER-TE
II

Herberto Helder


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.


©Herberto Helder
de Poesia Toda,
Assírio & Alvim, 1996
Portugal


abril 19, 2008



ESSA PALAVRA

Ana Vidal


Paira entre nós
essa palavra mágica e sagrada
que às vezes vem de sol incendiada
por uma ventania
devastadora e nua.
E outras vezes apenas se insinua
como uma leve brisa
que, soprando, desliza
envolvente e macia

Paira entre nós
essa palavra doce como mel
que, sem aviso, nos acende a pele
e nos aquece a alma
numa carícia quente
Mas num instante, caprichosamente
se faz cruel saudade
que nenhuma vontade
suaviza ou acalma

Paira entre nós
essa palavra de outra dimensão
que nos inunda os olhos de ilusão
como uma maré cheia
assim tão cegamente
que nos deixa à deriva, de repente
desafiando a sorte
nos faz trocar o norte
por cantos de sereia

Paira entre nós
essa palavra misteriosa e louca
que vai num beijo de uma a outra boca
rebelde, independente
com o poder de um Deus
E volta na tortura de um adeus
gravada a ferro e fogo
Um infindável jogo
que apenas se pressente

Paira entre nós
essa palavra assustadora e bela
que em gestos e sorrisos se revela
num olhar se anuncia
mas sempre tão subtil
que mal lhe adivinhamos o perfil
já se tornou em nós
o pensamento, a voz
o caos e a harmonia

Paira entre nós
essa palavra, eterna feiticeira
que nos encanta e fere a vida inteira
Que nos domina, enfim
assim impunemente
porque nela se oculta, estranhamente
tudo o que mais queremos
tudo o que mais tememos
tudo o que não tem fim...


©Ana Vidal

In: Seda e Aço
Poemas
D&G Edições, em Dezembro de 2005
Portugal

março 30, 2008



A CARÍCIA DOS DEDOS

Guilherme de Almeida


Doce carícia dos teus dedos

longos, nervosos, de faiança!
As tuas mãos são meus brinquedos,
são meus brinquedos de criança. . .
Doce carícia dos teus dedos
que meu beijo procura e só meu sonho alcança!

Dedos afeitos ao carinho
suave das cordas harmoniosas;
a abrir missais de pergaminho,
martirizar lírios e rosas. . .
Dedos afeitos ao carinho
de tudo o que produz perturbações nervosas!

Dedos repletos de malícia,
de um sentimentalismo agudo;
acostumados à carícia
das almofadas de veludo. . .
Dedos repletos de malícia,
que podem quase nada e que conseguem tudo!

Dedos de luz, que até parece
que de um vitral alguma santa
deixou cair durante a prece. . .
No piano têm tanta alma, tanta
- dedos de luz! -, que até parece
que é o teclado que toca e é tua mão que canta!

Desses teus dedos fiz, um dia,
os cinco tubos de uma avena:
e eram tão cheios de harmonia,
que da excitante cantilena
desses teus dedos fiz, um dia,
essa alma musical que há em minha alma terrena.

Teus cinco dedos me provocam
o olhar, os lábios, os ouvidos
as mãos, o olfato. . . E se me tocam,
intencionais ou distraídos,
teus cinco dedos me provocam
a melhor sensação dos meus cinco sentidos!


©Copyright Belkiss Barroso de Almeida
In, Messidor
Licença editorial para o Círculo do Livro
CÍRCULO DO LIVRO S.A.
Caixa postal 7413
São Paulo, Brasil
Edição Original: 1919 - Messidor
Oficinas da Casa Editora O Livro.

março 25, 2008



ATIRA PARA O MAR

Renata Pallottini

Atira para o mar as tuas coisas
abandona os teus pais
muda de nome

esquece a pátria
parte sem bagagem
fica mudo e ensurdece
abre os teus olhos.

Se o teu amor não vale tudo isso
então fica onde estás
gelado e quieto.

O amor só sabe ir de mãos vazias
e só vale se for
o único projeto.


©Renata Pallottini
In, Um Calafrio Diário, 2002
São Paulo: Editora Perspectiva


março 06, 2008



Maria do Rosário Pedreira


"O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém."


©Maria do Rosário Pedreira

De: A Casa e o Cheiro dos Livros,
Lisboa: Quetzal, 1996.


fevereiro 22, 2008



MEU AMOR NÃO CABE NUM POEMA

Maria do Rosário Pedreira

O meu amor não cabe num poema - há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitectura
ou quartos que os gestos não preenchem.

O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto-
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece.

O meu amor não se deixa dizer- é um formigueiro
que acode aos lábios como a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema
podia ser o chão da sua casa.


©Maria do Rosário Pedreira
In "O Canto do Vento nos Ciprestes"
Editor: Gótica, 2001 - Portugal

janeiro 25, 2008



NINGUÉM SABE


Renata Pallottini

Ninguém sabe
mas você foi o escolhido.

O seu amor é único,
o seu amor é um homem sentado
pensando em seu cachorro
morto.

O seu amor é a última
orquídea do inverno
é pássaro pedindo água
pupila adormecida.

E você nem se importa
pelo fato de ser melhor
o seu nariz é grego
você é tão bonito
e nem liga.

E verdade que você tem sofrido muito
mas isso faz parte.
Quando você anda na rua as árvores florescem.
Você é meu amigo.
Você é
Eu.


©Renata Pallottini

In, Um calafrio diário, 2002
São Paulo: Editora Perspectiva


janeiro 04, 2008



A FRUTA ABERTA


Thiago de Mello

Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com a tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962.
Para Anamaria - Dedicação do Autor.

©Thiago de Mello
In, Faz Escuro Mas Eu Canto, 1998
Editora Bertrand Brasil Ltda
Rio de Janeiro - RJ - Brasil