março 30, 2008



A CARÍCIA DOS DEDOS

Guilherme de Almeida


Doce carícia dos teus dedos

longos, nervosos, de faiança!
As tuas mãos são meus brinquedos,
são meus brinquedos de criança. . .
Doce carícia dos teus dedos
que meu beijo procura e só meu sonho alcança!

Dedos afeitos ao carinho
suave das cordas harmoniosas;
a abrir missais de pergaminho,
martirizar lírios e rosas. . .
Dedos afeitos ao carinho
de tudo o que produz perturbações nervosas!

Dedos repletos de malícia,
de um sentimentalismo agudo;
acostumados à carícia
das almofadas de veludo. . .
Dedos repletos de malícia,
que podem quase nada e que conseguem tudo!

Dedos de luz, que até parece
que de um vitral alguma santa
deixou cair durante a prece. . .
No piano têm tanta alma, tanta
- dedos de luz! -, que até parece
que é o teclado que toca e é tua mão que canta!

Desses teus dedos fiz, um dia,
os cinco tubos de uma avena:
e eram tão cheios de harmonia,
que da excitante cantilena
desses teus dedos fiz, um dia,
essa alma musical que há em minha alma terrena.

Teus cinco dedos me provocam
o olhar, os lábios, os ouvidos
as mãos, o olfato. . . E se me tocam,
intencionais ou distraídos,
teus cinco dedos me provocam
a melhor sensação dos meus cinco sentidos!


©Copyright Belkiss Barroso de Almeida
In, Messidor
Licença editorial para o Círculo do Livro
CÍRCULO DO LIVRO S.A.
Caixa postal 7413
São Paulo, Brasil
Edição Original: 1919 - Messidor
Oficinas da Casa Editora O Livro.

março 25, 2008



ATIRA PARA O MAR

Renata Pallottini

Atira para o mar as tuas coisas
abandona os teus pais
muda de nome

esquece a pátria
parte sem bagagem
fica mudo e ensurdece
abre os teus olhos.

Se o teu amor não vale tudo isso
então fica onde estás
gelado e quieto.

O amor só sabe ir de mãos vazias
e só vale se for
o único projeto.


©Renata Pallottini
In, Um Calafrio Diário, 2002
São Paulo: Editora Perspectiva


março 06, 2008



Maria do Rosário Pedreira


"O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém."


©Maria do Rosário Pedreira

De: A Casa e o Cheiro dos Livros,
Lisboa: Quetzal, 1996.