maio 24, 2008



VIESTE COMO UM BARCO
CARREGADO DE VENTO


Maria do Rosário Pedreira


Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar esta cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.


©Maria do Rosário Pedreira,
Em “ O Canto do Vento nos Ciprestes”
Editora: Gótica, 2001
Portugal

maio 12, 2008



MAR

Al Berto


Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grebo. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: "onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar" e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.
Nunca mais o lembraremos
Um dia, em frente ao mar, ele pensou:
Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com isso. No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco provável que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem mundo, definitivamente só.
Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte, conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma vez mais, que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também, e que do seu nome não restasse uma sílaba.
Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios insolúveis: viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que, provavelmente, se conseguisse desvedar um deles, o outro sê-lo-ia também.
Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa quanto a obra escrita. Por vezes diluiam-se uma na outra, confundiam-se, tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita, um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção à sabedoria última do silêncio - a memória total do mundo.
O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa, desiludia-se. A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava inacessível; e outras ignorâncias surgiam, oturas trevas o cegavam. O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance.
Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro de si, um ser de lume - um anjo mudo que o iluminava, revelando- lhe aquilo que devia ou não silenciar.
E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talendo da árvore e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe era transmitida, ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele que diante de si se movia.
Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação - e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado, tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração.
Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca mais. Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde, é jovem ainda, e diz-me a sorrir:
- Aqui tens o inocente revólver para a eternidade.


©Al Berto, "O Esconderijo do Homem Triste", O Anjo Mudo,
Contexto, Lisboa 1993, pp. 42-45


maio 07, 2008



SE TU ME ESQUECES

Pablo Neruda


Quero que saibas

uma coisa.

Tu já sabes o que é:
se olho
a lua de cristal, o ramo rubro
do lento outono em minha janela,
se toco
junto ao fogo
a implacável cinza
ou o enrugado corpo da madeira,
tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe
aromas, luz, metais,
fossem pequenos barcos que navegam
para essas tuas ilhas que me aguardam.

Pois ora,
se pouco a pouco deixas de me amar,
de te amar, pouco a pouco, deixarei.

Se de repente
me esqueces,
não me procures,
já te esqueci também.

Se consideras longo e louco
o vento de bandeiras
que canta em minha vida
e te decides
a me deixar na margem
do coração no qual tenho raízes,
pensa
que nesse dia
a essa hora
levantarei os braços
me nascerão raízes
procurando outra terra.

Porém,
se cada dia,
cada hora,
sentes que a mim estás destinada
com doçura implacável.
Se cada dia se ergue
uma flor a teus lábios me buscando,
ai, amor meu, ai minha,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
do teu amor, amada, o meu se nutre,
e enquanto vivas estará em teus braços
e sem sair dos meus.


© Pablo Neruda, 1952
and © Heirs of Fábio Neruda, 1980.
Título original: Los versos dei Capitán

Tradução de: Thiago de Mello
Os Versos do Capitão
Impresso no Brasil, 2004 - 8a edição
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.


maio 04, 2008



NÃO SEI COMO DIZER-TE
II

Herberto Helder


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.


©Herberto Helder
de Poesia Toda,
Assírio & Alvim, 1996
Portugal