setembro 29, 2008



O VENTO NAS FOLHAS

Marta Gonçalves


Converso com o tamarindo e escuto
o vento nas folhas.
A palavra cobre a terra, cobre
as mãos inquietas. A idade é remota.
Longe ficaram as sementes.


A idade cega os olhos e invade a morte.
Não tenho o sono do limbo. O muro nasce
a erva no pôr-do-sol. A árvore vem do tempo
das águas e traz a maresia dos cardumes.


O silêncio das nascentes guarda a lonjura
da canção. O mesmo silêncio no verde pinheiro.
O verso perdeu o sol. Quero falar da criança
da rosa do último adeus da velha casa.
Sombras habitam o âmago do texto.


Converso com o tamarindo a história da alma.
A alma se esqueceu das estrelas. O medo
das confissões e o desespero da fala abrigam
um século de vida nos dedos nodosos de sonhos.


©Marta Gonçalves
In, Paisagem Imaginada
Juiz de Fora: Edições de Minas, 1997
Brasil


setembro 28, 2008



A SEREIA DAS PERNAS TORTAS

Adília Lopes


Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita.
Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:
-Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
-Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
-Faz-me ou bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam dela, tanto quando era bonita como quando era feia, como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.
Na cozinha do palácio as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso quando os criados foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
-Será uma sereia?- perguntaram em coro as criadas ao rei.
- Não, não é uma sereia porque tem as duas pernas, muito tortas, uma mais curta que a outra. - respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas foram embora:
- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona. E casaram logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.


©Adília Lopes
In, A Bela Acordada de Obra,
Lisboa, 1997
Portugal


setembro 22, 2008




MÃOS ABERTAS

(Ao Manuel Andrade)


Ana Vidal


Mãos abertas... li um dia
um poema que as cantava
mãos que nasceram para dar
Tão livres, que me encantava
aquela estranha magia
Mãos errantes, feitas de ar

Mãos abertas... como as mãos
do poeta que as cantou
tão esquivas como um adeus
Mãos que a poeira sujou
mãos moldadas em mil mãos
mãos de um homem que morreu

Mãos que só deram
e não tiveram
nada de seu
Mãos que se ergueram
e acenderam
estrelas no céu
Mãos que tocaram
mas não guardaram
sonhos perdidos
A sós ficaram
e se tornaram
anjos caídos


©Ana Vidal
In: Seda e Aço
Poemas
D&G Edições, Dezembro de 2005
Portugal

setembro 13, 2008



OS BARCOS

Thiago de Mello


Os barcos nascem como nascem dores.
E chegam como pássaros ao céu,
como flores do chão. São mensageiros.
Vêm na crista dos astros, vêm de ventres
por onde rolam rastros de cantigas
de antigas barcarolas estaleiras.
Trazem na proa audácias e esperanças,
as cismas e os assombros nos porões.


A mão que os faz, humana, os não perfaz,
apenas segue, tímida, ao comando
de vozes nascituras que lhe chegam
da boca dos martelos e das ripas.
A si mesmos se fazem, pelo mando
de voz sem boca: os barcos são auroras.
Despejam-se na foz de águas escuras.
Contudo, chegam sempre de manhã.


Chegam antes, alguns. Outros são póstumos.
Há os que não chegam nunca: naufragaram
nas primícias do rio. Tantos mastros
se vergam na chegada, outros se racham.
Partem-se popas, lemes, em pelejas
imaginárias contra calmarias.
Uns são velozes, zarpam mal-chegados,
outros são lerdos, de hélices sem sonhos.


Há barcaças nascidas para as idas
ao oco dos mistérios, há as que trazem
lendas futuras presas ao convés,
as que guardam nos remos os roteiros
de grandes descobertas e as que vêm
para vingar galeras soçobradas.
Há as que já chegam velhas, sem navego.


O mar, sempre desperto, espreita e espera
a todos, e de todos se acrescenta.
Para barcos se fez o mar amargo
e fundo, sobretudo se fez verde.
O mar nem sempre os quer. O mar se tranca
frequentemente a barcos, e os roteiros
marítimos se encantam em lajedos,
estraçalhando quilhas e calados.


O coração das caravelas viaja
desfraldado nos mastros, invisível
bandeira também bússola. Altaneiro,
ele surpreende, quando manso, as rotas
que se desenham longes sobre o mar.
Sextante é o coração, que escuta estrelas,
que antes de erguer as âncoras demora-se
em concílio amoroso com os ventos.


O coração comanda. Manda e segue.
E, à sua voz, os barcos obedecem
e avançam, confiantes, pois dos mastros
as velas vão surgindo, vão crescendo
como cresce uma folha de palmeira,
às manobras da brisa sempre dóceis.
De caminhos de barcos sabe o mar.
Os ventos é que sabem dos destinos.


©Thiago de Mello
In, Poemas Preferidos
pelo autor e seus leitores, 2001
(Do Livro: Tenebrosa Acqua,1954)
Editora Bertrand Brasil Ltda
Rio de Janeiro - RJ - Brasil


setembro 08, 2008



POEMA PARA HABITAR

Albano Martins



A casa desabitada que nós somos

pede que a venham habitar,

que lhe abram as portas e as janelas

e deixem passear o vento pelos corredores.

Que lhe limpem os vidros da alma

e ponham a flutuar as cortinas do sangue

– até que uma aurora simples nos visite

com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.

Até que uma flor de incêndio rompa

o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.

Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua

sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.


©Albano Martins
Em: Coração de Bússola
Colecção "Daimon", Évora, 1967
Portugal


setembro 06, 2008



POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO

Natália Correia


Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
E a cor dum navio em movimento
E como ave, ficar parada a vê-la
E como flor, qualquer odor no vento.

Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio de cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Deixem ao dia a cama de um domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.


©Natália Correia

Primeira Edição em: Passaporte, 1958
Depois em: Poesia Completa, 1999
Publicações Dom Quixote
Portugal