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O PÁSSARO DE PEDRA Marta Gonçalves Era dezembro. O anjo vestido de açafrão voava na Estrada da Bica. O flamboyant florido. O poeta recolhia o silêncio nos olhos. Pastorava poemas o rosto perdido no tempo. Ouvia os pardais na janela. Longe, o sonho derretendo no último verão. O pássaro se esconde do dilúvio. Os escorpiões estancam o relógio de marrom glacê. O sal nas paredes, vultos alastram lembranças. O poeta sente as vértebras soterradas. A liberdade da mão forma concha e asas morrem no pórtico da casa. Era dezembro. O anjo vestido de açafrão sangrou a túnica do poeta. Levou os pardais. O vento sopra na noite os lábios de pedra. Vejo a tocha da poesia no caminho. Coloco âncoras, os sinos dobram, escuto ladainhas de Ouro Preto. A clarineta veste a alma e papoulas enfeitam nuvens. Viaja para o equinócio. Seu corpo é o mito da linguagem. Coloco o manto de lã repleto de memórias. O vôo leva os pardais.
HORA Sophia de Mello Breyner Andresen Sinto que hoje novamente embarco Para as grandes aventuras, Passam no ar palavras obscuras E o meu desejo canta --- por isso marco Nos meus sentidos a imagem desta hora. Sonoro e profundo Aquele mundo Que eu sonhara e perdera Espera O peso dos meus gestos. E dormem mil gestos nos meus dedos. Desligadas dos círculos funestos Das mentiras alheias, Finalmente solitárias, As minhas mãos estão cheias De expectativa e de segredos Como os negros arvoredos Que baloiçam na noite murmurando. Ao longe por mim oiço chamando A voz das coisas que eu sei amar. E de novo caminho para o mar.
SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHASFernando PessoaSorriso audível das folhasNão és mais que a brisa aliSe eu te olho e tu me olhas,Quem primeiro é que sorri?O primeiro a sorrir ri.Ri e olha de repentePara fins de não olharPara onde nas folhas senteO som do vento a passarTudo é vento e disfarçar.Mas o olhar, de estar olhandoOnde não olha, voltouE estamos os dois falandoO que se não conversouIsto acaba ou começou?