dezembro 02, 2007



ÁGUA DE REMANSO

Thiago de Mello

Cismo o sereno silêncio:
sou: estou humanamente
em paz comigo: ternura.

Paz que dói, de tanta.
Mas orvalho. Em seu bojo
estou e vou, como sou.

Ternura: maneira funda,
cristalina do meu ser.
Água de remanso, mansa
brisa, luz de amanhecer

Nunca é a mágoa mordendo.
Jamais a turva esquivança,
o apego ao cinzento, ao úmido,
a concha que aquece na alma
uma brasa de malogro.

É ter o gosto da vida,
amar o festivo, e o claro,
é achar doçura nos lances
mais triviais de cada dia.

Pode também ser tristeza:
tranqüilo na solidão macia.
Apaziguado comigo,
meu ser me sabe: e me finca
no fulcro vivo da vida.

Sou: estou e canto.



Pequeno Diário...De uma Viagem em Busca da Baunilha
Um breve relato com poesia e aventura...


Ainda cedo... Dia Azul, cor de passeio, partimos para uma estrada que já faziam anos que não via. Só quando revi, senti saudades, saudades que havia sentido sem saber, de nunca mais tê-la revisitado. Sentimento que só cresceu quando desviamos da estrada principal, e adentramos pela antiga que leva ao Porto de Paranaguá. Caminho todo florido, cruzado diversas vezes pelo ainda mais antigo percurso dos Jesuítas à caminho dos Campos Gerais.

Só ali realmente a doçura veio se mostrar em todas as suas cores, com a neblina descortinando com seu lento acordar, revelando toda beleza ainda intacta da Serra do Mar. Pássaros cantando, bromélias em flor, rios cristalinos e tudo banhado com uma úmida e mansa brisa vinda do mar. À vista, mas longe ainda.

Apesar de tanta conversa, estava só, pensando quantas vezes descemos e subimos aquela serra, quando ainda era criança. Com um carro antigo, e me lembro bem dos sons, gostos e sentimentos do tempo de menino.

Chegado ao fim dessa maravilhosa descida, onde por fim ainda se cruzam alguns rios de água bem limpa, cheios de pedras, cantos de sombra com folhas secas, esperando sua vez para entrar na correnteza. Mal sabem elas que quilômetros a frente o grande Atlântico lhes contará as baladas finais de como navegar.

Chegamos em Porto de Cima - Cidade vizinha de Morretes. De tanto parar, fotografar, apreciar apenas o silêncio, já se fez hora de acalmar a amiga fome que estava bem presente e audível. Coisa feita num casarão antigo, ainda da época colonial, chamado de Dona Siroba - restaurante com comida de frutos dos mar. Pura Delícia. Só isso que posso relatar, pois não vou atentar ninguém, descrevendo as iguarias que saíram daquela cozinha simples. (ampliada pela nossa fome muito grande).

Realizado isso, sem a menor pressa, apreciando cada prato, cada aroma, nos dirigimos finalmente ao que viemos fazer. Fatima já havia me preparado, quando me contou: " Hay, o casal que vive onde vamos fotografar, é meio alternativo, e estão bem distantes da vida moderna. São nordestinos que vieram para o sul e decidiram dar um rumo diferente às suas vidas..." Bom, pensei muitas coisas comigo - mas era melhor chegar lá.

Foi justamente esse o pequeno problema: chegar. Não era apenas dirigir até diante da porta deles e dizer olá. A estradinha de chão, a cada cinqüenta metros de subida ficava mais estreita, com pedras enormes expostas, lavadas pelas chuvas. Fatima dirigindo bem, mas assim mesmo o carro rolava de uma para outra... Isso continuou até o caminho ficar intransitável para aquele carro. Paramos numa sombra e Fatima comunicou: daqui pra frente - só caminhando.

Esse caminho fica no pé do Conjunto Marumbi, que são as montanhas mais lindas do Paraná. (Pensei no almoço na Dona Siroba). Agora subir isso, a bolsa pesada com equipamento fotográfico, tripé igualmente pesado, as botas da Fatima. Ela ainda com uma caixa de isopor para acondicionar as flores para sua futura ilustração botânica... Bom, nada nos restava a não ser subir pela estrada. O calor se fazia bem presente, além de todos aqueles amigos que me adoram por causa da pele clara. Ou seja, mosquitos pólvora, mutucas de todas as espécies, mosquitos, apesar de todo Autan, Citronela e Óleo de Amêndoas (o que mais resolve, acho) que coloquei. Alguns desses seres nem com isso se convencem e entram pelas mangas da camiseta e pela calça... sei lá! Sei que voltei picado em lugares, no mínimo, estranhos.

Finalmente lá. Uma casa branca com janelas e portas azuis emoldurada pela Mata Atlântica, e como pano de fundo, o Grande Marumbi. Entramos, nos livramos da carga, e surgiram apenas dois cachorros que logo se acalmaram depois de rápida e ruidosa apresentação. Finalmente, apareceu a nossa anfitriã de apelido gostoso Sarica, com feições muito marcantes e que apesar de não ser mais tão jovem, muito bonita. Imagino que ela é uma mistura de nordestina com indígena, não sei, não me senti intimo o suficiente para perguntar. Não a percebi assim tão diferente, ou seja lá o que for, e sim uma mulher que tem seu coração nas coisas simples da vida: como fazer pão em casa e assar no forno de lenha. Lá, fogão à gás não tem mesmo, muito menos chuveiro quente, e tantas outras coisas, as quais achamos normais na cidade.

Sarica tem sempre um olhar distante, apesar de prestar atenção na conversa. E descobri, coisa que Fatima não havia mencionado, que é uma maravilhosa ilustradora de pássaros, pois mostrou seus trabalhos, depois de minha insistência. Todos lindos, sem exceção. Olhava as decorações pintadas no velho teto, a mesa rústica de aspecto pesado e muito antiga, quando sou interrompido pela entrada silenciosa de um senhor alto com traços mais sofridos, mas que traz também um sorriso escondido, e tem fala macia e pausada. Sou apresentado ao João, marido de Sarica. Ele é o amante das Flores, e em especial as Orquídeas.

João, como diz Thiago de Mello, "traz uma solidão macia consigo". Viaja muito, conta ele. Vai de onibus para o Nordeste para buscar todo tipo de artesanato, que é vendido aos turistas que passam por Morretes e Antonina. Dessa forma, traz também os amores da vida dele, ou seja, as plantas.

Depois desse gostoso primeiro contato, João estava maravilhado em poder mostrar suas plantas, que crescem em todos os cantos: depois de moitas, dentro do mato ou em pleno sol. Onde o nosso dedo apontava, vinha uma explicação científica, seguida do nome botânico em latim, e o nome popular. Fiquei impressionado com o conhecimento daquele ser sereno. E por fim, aquela que até eu reconheci e soube dizer seu nome em latim.



O poeta Gonçalves Dias dedicou à planta um poema - 1861

A baunilha

Vês como aquela baunilha
Do tronco rugoso e feio
Da palmeira - em doce enleio
Se prendeu!
Como as raízes meteu
Da úsnea no musgo raro,
Como as folhas - verde-claro -
Espalmou!
Como as bagas pendurou
Lá de cima! como enleva
O rio, o arvoredo, a relva
Nos odores,
Que inspiram falas de amores!
Dá-lhe o tronco - apoio, abrigo.
Dá-lhe ela - perfume amigo,
Graça e olor!
E no consórcio de amor
_Nesse divino existir_
Que os prende, vai-lhes a vida
De uma só seiva nutrida,
Cada vez mais a subir!
Se o verme a raiz lhe ataca,
Se o raio o cimo lhe ofende,
Cai a palmeira, e contudo
Inda a baunilha recende!
Um dia só! _ que mais tarde,
Exausta a fonte do amor,
Também a baunilha perde
Vida, graça, encanto, olor!
Eu sou da palmeira o tronco,
Tu, a baunilha serás!
Se sofro, sofres comigo;
Se morro - virás atrás!
Ai! que por isso, querida,
Tenho aprendido a sofrer!
Porque sei que a minha vida
É também o teu viver.


A Baunilha parecia estar a nossa espera. Somente algumas flores não mais suportaram o calor que tinha sido demais. O ar quente e parado da tarde estava tomado do Perfume da Baunilha. João cortou uma parte florida, que seria colocada no isopor, enquanto isso me coloquei a fotografar. Foram 100 fotos aproximadamente, de todas as formas. Tarefa realizada, era uma lacuna de tanto tempo preenchida. Após isso, fiz fotos de dezenas de outras espécies de orquídeas, abacaxis raros - minúsculos com cores fantásticas, suculentas, cactos... Isso nunca tinha fim. Eu sentia a pele ardendo, pois o principal, tinha esquecido: Protetor Solar.

As horas foram sendo engolidas, estava já com aproximadamente 2000 imagens, todas em alta resolução. Lavei meu rosto num riachinho de águas cristalinas. Decidimos que era hora de tomar o rumo de volta. Antes de ir, João tinha feito um mimo. Sabendo da nossa vinda, preparou sorvete de araçá com manga, frutas colhidas ali. Uma Delícia! E tão bem vindo depois dessa longa tarde de calor e mormaço.

Despedidas demoradas, e Sarica nos acompanhou até um pedaço do caminho. Mais despedidas... pois ela é toda ternura.

Como diz o ditado: "para baixo todo santo ajuda". Foi mais fácil o longo caminhar até o carro. Enquanto descíamos, Fatima perguntou o que eu havia feito para o João falar tanto – e respondi: nada! Ela nunca o tinha visto conversar assim. Ele era silêncio...

Colocamos-nos de volta em direção a Curitiba. Optamos em retornar pela estrada nova de Paranaguá, que é toda duplicada, e de trajeto mais curto. O retorno foi o contrário da ida, ambos falamos pouco. Eu porque estava com um misto de vários sentimentos, muitos que ainda não consigo descrever, sem ficar com os olhos marejados. Posso dizer apenas: foi uma experiência que me colocou mais em contato comigo mesmo, do qual muitas vezes fujo.


É ter o gosto da vida,
amar o festivo, e o claro,
é achar doçura nos lances
mais triviais de cada dia.

Pode também ser tristeza:
tranqüilo na solidão macia.
Apaziguado comigo,
meu ser me sabe: e me finca
no fulcro vivo da vida.

Sou: estou e canto.


Revisão realizada pela Querida Amiga Carol Timm
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