janeiro 08, 2011



FELIZ, INSUPORTAVELMENTE

Thiago de Mello


Para Mario Benedetti, hermano

Aos poucos a luz perde o resplendor.
O rio sabe a sangue, e ninguém sabe.
É a derradeira chance de me ver
pela primeira vez inteiro: cara a cara.
Simplificar prefiro. Por que hesito
em revelar as águas escuras
que me percorrem, essas onde moram
peixes cinzentos, surdos, que me sabem?
Dizer me basta que não cometi
o pecado pior do homem:
o de não ser feliz (O juízo é de Borges,
que era cego, mas descobriu a rosa
escondida no coração da moça.)
Vi o fundo de um lago de esmeraldas.
Eu fui feliz, insuportavelmente.
As desgraças que duras me feriram
nada foram (contando a de existir)
ao lado dos milagres que vivi,
dos mágicos momentos que inventei.
Não é preciso ir longe. Numa noite
de ardente primavera eu viajei,
abraçado aos cabelos desvairados
que me ensinavam o cântico dos cânticos,
pelo mar dos espaços siderais.
Voltei intacto. Parece que passaram
eternidades.
Sozinho agora sou: perante mim,
ou entre mim e a noite que me chama,
espaço em que mal cabe o que escondi.
E mais de meio século de festa,
de lágrimas, de assombro, de ternura,
inútil se resume na fagulha
fugaz do tempo em que meu ser total,
resíduo de memórias, já se adere
— imperceptível —
ao silêncio noturno da floresta.


©Thiago de Mello
Poemas Preferidos
pelo autor e seus leitores, 2001
(Do Livro: Campo de Milagres,1998)
Editora Bertrand Brasil Ltda
Rio de Janeiro - RJ - Brasil


janeiro 02, 2010



A VIDA

Nuno Júdice


A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.


Nuno Júdice, in "Teoria Geral do Sentimento"
Nasceu em Mexilhoeira Grande, Portimão, 1949
Portugal
Escritor, poeta e ensaísta.


dezembro 26, 2009



OS AMIGOS


José Tolentino de Mendonça


Esses estranhos que nós amamos

e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor


José Tolentino de Mendonça
De Igual Para Igual
Nasceu na ilha da Madeira, 15.12.1965


março 09, 2009

MINHA DESPEDIDA!!!

Vania Staggemeier

Não é um adeus definitivo...
Preciso de tempo...
Vou sair pelo mundo...
Vou viajar...Estudar..
Vou curar as feridas da alma...
E também do coração....

Vou analisar o mundo os Astros...
Mas levo todos vocês em meu coração...
Vou deixar a porta aberta para quem quiser...
Visitar-me e deixar o seu recado...
Onde quer que eu esteja...
Sempre que der passarei para lhe visitar...

Sou errante...Viajante do tempo...
Eu sou como o vento...
Apenas eu passo...
Se sentires um leve aroma de jasmim....
Serei eu que estarei chegando...
Pra matar minha saudade...
Dos amigos que aqui deixei...

Vou passar na Argentina...
Vou dançar um tango de Gardel...
Vou levar meu violão...
Vou rimar meus versos...
Vou ouvir meu coração...
Vou apreciar a natureza...
Vou observar o colorido das flores...
Vou melhorar meu visual...
Vou aos anjos agradecer...

Não é um adeus...Apenas uma partida...
Na vida precisamos inovar novos caminhos...
E eu ainda sou uma mera aprendiz...



Faço uso das palavras desse lindo poema
E deixo o meu adeus desse espaço,
Onde vocês deixaram tanto carinho,
Que meu coração segue cheio
De Saudades...





dezembro 02, 2008

MUDEZ

Torquato da Luz


Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.


©Torquato da Luz
http://oficiodiario.blogspot.com/



outubro 18, 2008



O ALFANGE DO TEMPO

Thiago de Mello


Para Antonio Faria

O tempo é o grande milagre
da vida do homem no mundo.
Não tem começo nem fim.
Mas está vivo, animal
respirando imenso em tudo
que a gente quer, sonha e faz.

O tempo que já passou
te conta como vai ser
o tempo que vai chegar.
Tudo leva a sua marca,
de pétala ou de ferrão.

Tudo traz o seu condão:
a criança correndo; o rio
passando, a rosa se abrindo,
a lágrima da alegria,
o silêncio da amargura,
a luz-mansa da ternura,
o sol negro da pobreza.

O tempo é o nada que é nada.
O tempo é o tudo que é tudo,
o tudo que vira nada,
o nada virando amor,
o amor inventando estrelas,
a mais linda se apagou
na fronte da moça amada.

O tempo está no teu peito
clamando nas coronárias,
mas se esconde nas funduras
dos neurônios quando sonhas.
Está no fogo e no orvalho,
fermenta o pão que não chega,
arde o forno da esperança.

Alma do tempo é a mudança
que come o que vai mudando
e depois dorme sonhando
disfarçado de memória.

Nada perdura na vida,
a não ser o próprio tempo,
finge que passa, mas fica.
Imutável, modifica.

O tempo é o sol do milagre.
Cuidado, ele está chegando
na claridão da manhã.
A noite inteira ficou
no seu passo, te esperando,
de espreita em teu próprio sono.

Vem vindo para comer
na palma da tua mão.
Trata bem dele, aproveita,
enquanto há tempo, o que o tempo
permite ao teu coração.

Quem sabe ele vem trazendo
um alfange? Ninguém sabe.
Pode ser uma canção.

Barreirinha estrelada, 1998.


©Thiago de Mello
Poemas Preferidos
pelo autor e seus leitores, 2001
(Do Livro: Campo de Milagres,1998)
Editora Bertrand Brasil Ltda
Rio de Janeiro - RJ - Brasil


outubro 05, 2008



BUCÓLICA

Miguel Torga


A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.


©Miguel Torga
Escrito em S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937
Publicado em “Diário I”, Coimbra, 1941
E em “Poesia Completa”, 2000
Editora: Dom Quixote
Portugal