dezembro 19, 2006


RECEITA DE FINAL DE ANO

Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

dezembro 01, 2006


SE EU SEI

Renata Pallottini

Se eu sei
que algum dia uma tarde
sozinha sentindo a minha vida esvaziada
terei uma saudade exata deste preciso instante
Se eu sei
que este cheiro de café recém-coado e a voz de minha mãe
cantando uma velha canção sem palavras velha até mesmo para ela
estão proibidos de voltar sob nenhum disfarce
Por que não interrompo a voz com um grito
não digo — minha mãe me dá um copo de água
não impeço o momento de ser tão soberanamente
com seus perfumes seus sabores
sua carnação de tempo
se eu sei?

novembro 12, 2006


O PÁSSARO DE PEDRA

Marta Gonçalves

Era dezembro. O anjo vestido de açafrão
voava na Estrada da Bica. O flamboyant
florido. O poeta recolhia o silêncio nos olhos.

Pastorava poemas o rosto perdido no tempo.
Ouvia os pardais na janela. Longe, o sonho derretendo
no último verão. O pássaro se esconde do dilúvio.
Os escorpiões estancam o relógio de marrom glacê.

O sal nas paredes, vultos alastram lembranças.
O poeta sente as vértebras soterradas. A liberdade
da mão forma concha e asas morrem no pórtico da casa.

Era dezembro. O anjo vestido de açafrão sangrou a túnica
do poeta. Levou os pardais. O vento sopra na noite os lábios
de pedra.

Vejo a tocha da poesia no caminho. Coloco âncoras,
os sinos dobram, escuto ladainhas de Ouro Preto.

A clarineta veste a alma e papoulas enfeitam nuvens.
Viaja para o equinócio. Seu corpo é o mito da linguagem.
Coloco o manto de lã repleto de memórias. O vôo leva os pardais.



HORA

Sophia de Mello Breyner Andresen

Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.

novembro 06, 2006


SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS

Fernando Pessoa

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

setembro 30, 2006


PALAVRAS

Marta Gonçalves

O vegetal que me cerca e envolve meu corpo arreia as correntes dos braços. Deixaremos vidros quebrados nas manhãs e o sol brotará sementes de milho. Chegará a época de recriarmos o solo da terra, de aleitarmos a infância. Deve existir uma mudança cósmica neste pó que habitamos. Sorveremos água das pedras e as montanhas que nos cercam perderão a chave. Ao abrir as portas, a palavra chegará na ponta do mar. A areia quente das praias vai sorver borboletas. Descobrirão que a poesia chega no vento. Ela precisa de olhos além do infinito. O poeta não deve sair de sua solidão. Quieto em seu canto, armazena a alquimia. Existem palavras que são lâminas cortando veias. E essas veias sangrarão as faces nodosas. Destruiremos o lodo, mas a erva continuirá crescendo nas noites. Jogaremos margaridas brancas, poucos estenderão as mãos para colhê-las.

setembro 16, 2006


LIVRO DAS PERGUNTAS

Pablo Neruda

Tem coisa mais boba na vida
que chamar-se Pablo Neruda?

Que vim fazer neste planeta?
A quem dirijo esta pergunta?

E que importância tenho eu
no tribunal do esquecimento?

Não era verdade que Deus
vivia no mundo da lua?

Minha poesia desgarrada
abr'olhos com estes olhos meus?

Por que me picam as pulgas e os
sargentos da literatura?

Que dirão da minha poesia
os que não tocaram meu sangue?

Posso perguntar ao meu livro
se eu mesmo o escrevi? Desde quando?

Por que nas épocas obscuras
se escreve com uma tinta extinta?

E por que detesto as cidades
com cheiro de mulher e urina?

Quem devorou rente aos meus olhos
um tubarão cheio de pústulas?

Por que andam as ondas me indagando
sobre as mesmíssimas perguntas?

Por que não nasci misterioso?
Por que cresci sem companhia?

Das tais virtudes que esqueci
dá pra fazer um terno novo?

Onde está o menino que fui:
anda comigo ou evaporou-se?

Sabe que nunca fui com ele
nem ele comigo tampouco?

Por que estivemos tanto tempo
crescendo para essa ruptura?

Quando minha infância se foi
por que nós dois não fomos junto?

Ainda ontem disse aos meus olhos:
quando de novo nos veremos?

Não é melhor nunca que tarde
dentro de listões amarelos?

Em que janela me quedei
em busca do tempo, se pulcro?

Ou o que diviso destes ermos
ainda não passa de futuro?

Que me esperava em Ilha Negra:
verdades verdes? compostura?

Se morri e não me dei conta
morto, a'hora, a quem me pergunto?

Quem me mandou desvencilhar-me
das portas do meu amor-próprio?

É verdade que um condor negro
sobrevoa minha pátria noite?

Que há de pesar mais na cintura:
padecimentos? memórias?

Que deu em mim de transmigrar
se vivem no Chile meus ossos?

Por que me movo sem querer?
Por que estou sempre desinquieto?

E se minh'alma desabou
por que meu esqueleto prossegue?

Por que vou girando sem rodas
e voando sem asas nem penas?

Por que minha roupa desbotada
se agita como uma bandeira?

E que bandeira tremulou
no espaço em que não me esqueceram?

Pois não foi onde me perderam
que eu me dei, enfim, por achado?

Esse onde onde termina o espaço
se chama de morte ou infinito?

Por que voltei à indiferença
do maroceano desmedido?

Achas que o luto te antecipa
à bandeira do teu destino?

Se caí no laço do mar
por que fechei os meus caminhos?

Que significa persistir
no beco da morte-sem-saída?

E no mar do não-passa-nada
mortalha faz algum sentido?

Por que trabalham sal e açúcar
construindo-se uma torre branca?

Onde fica o umbigo do mar?
Por que até ali não chegam as ondas?

Foi das costas do mar que eu vim:
para onde vou quando me atalha?

Não sentes também o perigo
na gargalhada do maralto?

Onde terminará o arco-íris:
dentro da alma ou no horizonte?

Vejo de novo o mar ab ovo:
o mar me viu ou botou banca?

Não choras rodeado de risos
- só - com as garrafas do vazio?

Quanto media o polvo negro
que obscureceu a paz do dia?

Não será nossa vida um túnel
entre duas vagas claridades?

Ou não será uma claridade
entre dois triângulos escuros?

E não achas que a morte vinga
dentro do sol de uma cereja?

Ou que em perigosas substâncias
do não ser, a morte lateja?

Devo escolher esta manhã
entre o céu e o mar, tudo ou nada?

Quem sabe lá de onde é que vem
a morte: de cima ou de baixo?

A morte não seria enfim
uma cozinha interminável?

Ou não seria a vida um peixe
preparado para ser pássaro?

setembro 14, 2006


EU AQUI ME DESPEÇO

Pablo Neruda

Eu me despeço.
Volto à minha casa, em meus sonhos.
Volto à Patagônia, aonde o vento golpeia os estábulos e salpica de frescor o Oceano.
Sou nada mais que um poeta: amo a todos, ando errante pelo mundo que amo.
Em minha pátria, prende-se mineiros e os soldados mandam mais que os juízes.
Entretanto, amo até mesmo as raízes de meu pequeno país frio.
Se tivesse que morrer mil vezes, ali quero morrer.
Se tivesse que nascer mil vezes, ali quero nascer.
Perto da araucária selvagem, do vendaval que vem do sul,
das campanas recém compradas.
Que ninguém pense em mim.
Pensemos em toda a terra, golpeando com amor a mesa.
Não quero que volte o sangue...
a molhar o pão, os feijões, a música:
quero que venha comigo o mineiro,
a criança, o advogado, o marinheiro, o fabricante de bonecas.
Que entremos no cinema e bebamos o vinho mais tinto.
Eu não vim para resolver nada.
Vim aqui para cantar e quero que cantes comigo.

COMO NUVENS PELO CÉU

Fernando Pessoa

Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?

setembro 07, 2006


NAVEGUE

Silvana Duboc

Navegue, descubra tesouros, mas não os tire do fundo do mar, o lugar deles é lá.
Admire a lua, sonhe com ela, mas não queira trazê-la para a terra.
Curta o sol, se deixe acariciar por ele, mas lembre-se que o seu calor é para todos.
Sonhe com as estrelas, apenas sonhe, elas só podem brilhar no céu.
Não tente deter o vento, ele precisa correr por toda parte, ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
Não apare a chuva, ela quer cair e molhar muitos rostos, não pode molhar só o seu.
As lágrimas? Não as seque, elas precisam correr na minha, na sua, em todas as faces.
O sorriso! Esse você deve segurar, não deixe-o ir embora, agarre-o!
Quem você ama? Guarde dentro de um porta jóias, tranque, perca a chave!
Quem você ama é a maior jóia que você possui, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda, se o século vira e se o milênio é outro, se a idade aumenta;
conserve a vontade de viver, não se chega à parte alguma sem ela.
Abra todas as janelas que encontrar e as portas também.
Persiga um sonho, mas não deixe ele viver sozinho.
Alimente sua alma com amor, cure suas feridas com carinho.
Descubra-se todos os dias, deixe-se levar pelas vontades, mas não enlouqueça por elas.
Procure, sempre procure o fim de uma história, seja ela qual for.
Dê um sorriso para quem esqueceu como se faz isso.
Acelere seus pensamentos, mas não permita que eles te consumam.
Olhe para o lado, alguém precisa de você.
Abasteça seu coração de fé, não a perca nunca.
Mergulhe de cabeça nos seus desejos e satisfaça-os.
Agonize de dor por um amigo, só saia dessa agonia se conseguir tirá-lo também.
Procure os seus caminhos, mas não magoe ninguém nessa procura.
Arrependa-se, volte atrás, peça perdão!
Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudades, mate-a.
Se perder um amor, não se perca!
Se achá-lo, segure-o!
"Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala. O mais é nada".

setembro 01, 2006


MAPA DE ANATOMIA: O OLHO

Cecília Meireles

O Olho é uma espécie de globo,
é um pequeno planeta
com pinturas do lado de fora.
Muitas pinturas:
azuis, verdes, amarelas.
É um globobrilhante:
parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.

Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
umas são imagens do mundo,
outras são inventadas.

O Olho é um teatro por dentro.
E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no Olho, lágrimas.

agosto 25, 2006



OBSESSÃO DO MAR OCEANO

Mario Quintana

Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.

agosto 20, 2006


MENINO TRISTE

Carol Schneider

Vá ao encontro das nuvens errantes...
Nelas, encontrarás os sorrisos guardados,
os olhares furtados e os amores abortados.
Deixe, menino, que de ti se aproximem todos que te amam
E assim, no fundo d'alma, todo teu ser se iluminará
e sentirás o torpor do mais sublime sentimento...
E mutado a sorriso será teu triste semblante!

Poema resposta da amiga Carol,
ao Nuvens Errantes.

agosto 19, 2006


NUVENS ERRANTES

Hay

Porque afinal é tão distante?
Amor nenhum mais lhe alcança
Não deixa esse sentimento se aproximar
Mas sua falta lhe dói lá fundo da alma
Como aconteceu isso?
Onde foi o menino sempre sorriso?
E agora quase sempre triste!
Seriam saudades, mas do que?
Das nuvens errantes?

agosto 17, 2006


COMO É POR DENTRO OUTRA PESSOA

Fernando Pessoa

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

agosto 16, 2006


EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS

Mario Quintana

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar os olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas...e que são escritas
do lado de fora do papel...Não sei, eu nunca soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente de puro, ao
vento da Poesia...
Como
uma pobre lanterna que se incendiou!

agosto 11, 2006


AS MÃOS DE MEU PAI

Mario Quintana

As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
- como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre
[cólera dos justos...
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza
[que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços
[da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas...
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
[vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los
[contra o vento?
Ah! como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das
[tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos
[nodosas...
essa chama de vida — que transcende a própria vida
... e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

agosto 07, 2006


LILI

Mario Quintana

Teu riso de vidro
desce as escadas às cambalhotas
e nem se quebra,
Lili,
meu fantasminha predileto!
Não que tenhas morrido...
Quem entra num poema não morre nunca
(e tu entraste em muitos...)
Muita gente até me pergunta
quem és... De tão querida
és talvez a minha irmã mais velha
nos tempos em que eu nem havia nascido.
És a Gabriela, a Liane, a Angelina... sei lá!
És a Bruna em pequenina
que eu desejaria acabar de criar.
Talvez sejas apenas a minha infância!
E que importa, enfim, se não existes...
Tu vives tanto, Lili! E obrigado, menina,
pelos nossos encontros, por esse carinho
de filha que eu não tive...

agosto 03, 2006



MORRE LENTEMENTE

Pablo Neruda

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não
ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem
não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem se transforma em escravo do
hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca,
não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não
conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o
negro sobre o branco e os pontos sobre os "is" em detrimento de um
redemoinho de emoções justamente as que resgatam o brilho dos
olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um
sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida
fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da
sua má sorte ou da chuva incessante.

Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de
iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não
responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Morre lentamente...

agosto 02, 2006


A ARTE DE SER FELIZ
Cecília Meireles

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio,
ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem,
para as gotas de água que caíam de seus dedos magros
e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela,
uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente,
que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

A IDADE DE SER FELIZ
Mario Quintana

Existe somente uma idade para a gente ser feliz, somente uma época
na vida de cada pessoa em que é possível sonhar e fazer planos
e ter energia bastante para realizá-los a despeito de todas as
dificuldades e obstáculos.
Uma só idade para a gente se encantar com a vida e viver
apaixonadamente e desfrutar tudo com toda intensidade sem medo
nem culpa de sentir prazer.
Fase dourada em que a gente pode criar e recriar a vida à nossa
própria imagem e semelhança e vestir-se com todas as cores
e experimentar todos os sabores e entregar-se a todos os amores
sem preconceito nem pudor.
Tempo de entusiasmo e coragem em que todo desafio é mais um
convite à luta que a gente enfrenta com toda disposição de tentar algo
NOVO, de NOVO e de NOVO, e quantas vezes for preciso.
Essa idade tão fugaz na vida da gente chama-se PRESENTE
e tem a duração do instante que passa.